Meu pai nunca foi uma pessoa que gostava de viajar. Eu acho, pelo menos. Pensando agora, enquanto escrevo isso, me lembro que, quando criança, ele e minha mãe faziam um turismo familiar para alguma cidade ou região. Ou janeiro, ou semana santa. Mas eu acho que era mais a minha mãe que planejava essa viagens.
Enfim.
O fato é que eu me mudei de cidade e ele nunca, nem uma vez, foi me visitar. Dizia que não gostava de cidade pequena. Eu respeito e até entendo. As pessoas, como as plantas, criam raízes que se aprofundam com o passar dos anos. O banheiro, a abertura correta da torneira para que a pressão da água no chuveiro seja ideal. A padaria com o melhor pão, com horário compatível com a rotina. É isso, A Rotina. Ela é confortável, ela traz o conforto que o capitalismo selvagem retira sem dó.
Daí, viagem significa arrancar essas raízes por um período determinado de tempo para voltar a se plantar novamente no seu lugar. Para alguns, aventura. Para outros, tortura. E acho que no caso do meu pai era torturante mesmo.
O fato é que ele morreu há uns anos. E conforme era seu desejo, foi cremado. Eu me lembro dele dizendo que não acreditava em nada espiritual e que era para jogar as cinzas "em qualquer lugar" (dando de ombros), pois, na verdade, para ele, "morreu, acabou".
Mas aí entra em cena a outra metade do meu DNA. Minha mãe. Religiosa desde sempre, foi com ela que aprendi a pesquisar crenças até desenvolver um sistema pessoal, meio capenga, de viver a vida sem ser agnóstica. Para ela, o espírito reencarna e o corpo é meio que um meio de transporte que usamos para fazer nossa ascensão espiritual.Eu, que quando mais nova morria de medo de fantasmas e gente morta, ouvia dela: "Filha, devemos é ter medo dos vivos".
E aí que os mais velhos me provaram mais uma vez serem detentores da sabedoria que apenas o tempo consegue conceder a quem tem um fio de juízo. E o ser ser humano, quando não evolui, passa a ser absorvido por esse esquema mesquinho de ter e colecionar bens materiais.
Quem está lendo provavelmente está se perguntando onde todo esse papo converge. E eu respondo: as cinzas do meu pai, mesmo depois de anos da sua morte, continuam presentes na minha vida. Eu, que tinha medo dos mortos, estou literalmente com uma caixa contendo os seus restos mortais.
E, ironicamente, fiz ele passear mais do que quando em vida. Levei ele para minha casa alugada e depois para meu sítio. Ele, que odiava mato, passou mais de um ano literalmente no meio da mata atlântica. E agora está num ônibus comigo voltando para o lugar que chamava de lar.
E antes que me considerem mórbida, já aviso que não, que todo esse rolê mais do que aleatório foi literalmente imposto a mim por alguém que ainda não entendeu que o apego a bens materiais não deveria incluir as cinzas de um ente querido. Pois é: as cinzas de meu pai são centro de uma pequena batalha entre irmãos que não querem desapegar.
Eu fui dano colateral e escrevo apenas para evitar enlouquecer de vez. A urna contendo as cinzas, das quais tenho pavor (para mim entram na categoria gente morta e eu ainda tenho medo de gente morta), foi deixada numa cadeira posicionada cuidadosamente num canto do quarto, sobre a pasta azul que continha os papéis que eu precisava.
Era para ser uma punição, mas eu aproveitei a oportunidade para também mostrar que posso ser mesquinha e "sequestrei" as cinzas. Meu irmão, quando soube que levei seu pai embora, mandou mensagens enlouquecidas perguntando o paradeiro da caixa, ao que eu prontamente respondi: nunca pensaria que as cinzas de papai seriam usadas como peso de papel, então achei que era para levar comigo.
Carreguei, a contra gosto, por quase 300 km a caixinha. E prontamente guardei num canto. Por anos ela ficou lá, numa situação meio dormente, mas sem fim definitivo. Sim, eu quis jogar no mar ou na mata. Mas, ao contrário do meu irmão, tenho algo que se chama bom senso e nunca agiria de volta a voluntariamente causar batalhas sem sentido para a minha vida.
Porém, o ser humano mesquinho se apega. E o monstro da ganância, anos depois, volta a dar o ar da graça. Do nada (repito, em caixa alta, DO NADA), recebi uma mensagem depois de mais de um ano, solicitando urgência na devolução da caixa, como se eu tivesse em algum momento me apossado dela indevidamente. Eu confesso que já havia silenciado esse contato específico que, meses antes, havia me causado transtornos em uma situação igualmente sem razão de ser. Malucos serão malucos.
Horas depois, uma nova mensagem que por acaso vi chegando ao vivo na minha lista de contatos, dizendo que ele estava sendo ignorado de forma deliberada e eu ia me arrepender.
Oi? Nem tinha visto você, pessoa doida.
Dei de ombros (já eu que já tinha ignorado, né, não custava esperar mais um tantinho por resposta( e fui conversar com minha mãe para entender o que estava acontecendo. E ela me lembrou porque devemos ter medo dos vivos: fui ameaçada por estar com as cinzas do meu próprio pai pelo meu irmão pois ele está puto querendo dinheiro. E como não podia me cobrar um pagamento (como já havia feito, de maneira muito tosca e errada com a minha irmã, via advogado), resolveu me "ameaçar" com as mesmas cinzas que ele deixou pra mim. E como a ameaça inicial não surtiuo efeito desejado, adicionou horas depois uma "mensagem ameaçadora".
E lá fui eu, mais uma vez, empacotar as cinzas para viagem. Só que, dessa vez, decidi levar com mais leveza a situação. Levando meu pai para passear uma última vez, assim como levava ele no supermercado a cada visita, principalmente em época de aniversário do Supermercado Guanabara. Levei ele na padaria, no banco e deixei ele do meu lado na poltrona do ônibus. Queria que ele pudesse ter visto a paisagem, comido uma empada que ele amava e bebido uma Pepsi zero twist. Um agradecimento silencioso, mais uma vez, por tudo. Um ADEUS minimamente digno da minha parte. Ele vai viver em mim, em metade do meu DNA, nas lembranças principalmente das piadas toscas que a gente fazia um com o outro.
Mas o que eu espero, realmente, é que essa situação tenha um fim mais digno. Uma possibilidade que infelizmente parece pouco provável. Porque eu cresci e me desapeguei, sei que, de alguma forma, os mortos não viram monstros mas precisam ser libertados para seguirem seu caminho, seja se desfazendo no ar para virarem lembranças ou para reencarnar novas aventuras.
E que o pó é apenas isso. Um resto, um punhado, um objeto inanimado que nos ensina a praticar o desapego e o "segue em frente".
Aos que ficam presos, só posso desejar um aprendizado com menos sofrimento e menos beligerância. Um aceite tranquilo de que tudo passa e vai embora, inclusive os bens materiais.