mais um adjetivo para volúvel ->
6.04.2006
uma das coisas tristes, porém reais, do universo é o velho "move on". para tudo, é a mesma coisa: "move on, acredoce, move on".
manhã de sábado. uma das promessas que minha avó me fazia era a de me dar a máquina de costura dela. o lado amélia sempre implorou para que ela me ensinasse todo aquele maravilhoso mundo de agulhas, linhas coloridas e pontinhos trabalhados. fora o desejo ENORME, IMENSURÁVEL, de obter uma maquininha linda e rosa, que tenha overlock.
pois então, parei o carro em frente ao apartamento da avó. sentindo-me culpada pela felicidade extrema de finalmente pôr as mãos naquela maquininha porreta!. entro no elevador e aperto o botão do 8o andar. sorrio para a criancinha de uns cinco anos, que aperta a mão do pai e arregala os olhos:
criancinha: eles vão para o oitavo andar!!!!... (voz baixa e aterrorizada.)
controlo o riso. afinal, quem sou eu para discordar que é um tanto horipilante que a população (avó e tio tarado) do 80X tenha morrido em pouco mais de 1 mês? tento ainda mandar um olhar encorajador para criança, mas ela se esconde atrás do pai, que olhava par a a porta, fingindo não estar envergonhado com a situação.
chego ao apartamento. eu sempre fiquei de fora dessas partilhas de bens, esvaziamento de espaço. até por ter sido criança demais (ou desnecessária). nunca tinha participado de tamanha tristeza. o primo (com quem não convivo) não sabe o meu nome e me chama de "menina", enrola as taças de cristal (nada tcheco, nada que valha muita coisa) em jornal para jogar fora.
acredoce (olhos tão arregalados e voz tão aterrorizada quanto as do menino): O quê??????? Você vai jogar isso fora?????? eu vou levar.
pai de acredoce: não se mete. pega a máquina e vambora.
acredoce: há. impeça-me, pai.
pai de acredoce dá de ombros e vai encaixotar as roupas da mãe. acredoce começa a catar sacolas para colocar o lindo conjunto de taças. olha para a coleção de sapinhos jogada num canto.
acredoce: você não vai jogar isso fora, né?
primo: olhe, menina, tudo que está aqui vai pra caçamba na sexta-feira. pega o que você quiser. eu já estou de saco cheio de ficar empacotando essa tralha toda.
acredoce se refestela. lembra da infância, dos sapinhos que eu mesmo havia dado quando criança, a estátua de buda que ela adorava por seu "um gordinho sorridente", as xícaras de chá japonesas, o pequeno elefante de cristal, as inúmeras jarras de suco (uma compulsão) que ficavam só enfileiradas na cristaleira. todas aquelas inutilidades que, realmente não valiam nem meio centavo, mas que eram a vida de uma pessoa. como me livrar daquilo? como deixar que um porteiro levasse os pratinhos de porcelana? como jogar na caçamba 90 anos de uma velhinha excêntrica e desbocada?
confesso, foi difícil. saí com o carro e o coração pesados. meu pai ficou quieto quando percebeu a minha intenção. foda-se o valor comercial. eu sou pobre mesmo e não quero ficar ganhando merrequinhas me arrastando pelos antiquários. o que é in-su-por-tá-vel, é pensar naquilo tudo virando detrito, babaquice, sobra.
agora elas estão - juro! - brilhando de alegria sobre o móvel. valor de revenda? ahn? o quê? vá pra, p*rra, amigo. essas são minhas. daqui a a500 anos, quem sabe, elas não estarão num museu?
aí olho para o canto da sala atrvancada e vejo aquela mesinha característica e especial perto da goteira na sala. o coração pára de bater um instante. eis a linda singer!
confesso: eu chorei. quando abri o gabinete e vi aquela máquina de 1966, com manual e caixa de acessórios, amarelada e perfeita. a tesoura de picote ainda na caixa. os fios cuidadosamente enrolados e guardados. os testes de pontos dobrados cuidadosamente. dali vieram minhas roupas de Barbie. dali vieram todos aqueles vestidinhos bregas que ela adorava fazer para os netos.
num antiquário, ela não vale nem cem reais - quem quer uma máquina dos anos 60 quando as de hoje em dia são robotizadas? -. mas para mim, acreditem, aquilo dali é mais do que meu sonho de consumo de R$ 800-e-tantos, com overloque, pregador de botão e 36 pontos. aquilo é história pessoal e intransferível.
quero pensar que, um dia, minha neta (ou bisneta) vai enxergar o valor da maquininha-de-merda-e-obsoleta. o ranger do motor, os cuidados constantes, o português de escrita que já caiu em desuso.
sempre guardei um grande ressentimento pela ganância dos outros tios que levaram para o antiquário, a caixinha de música que minha avó sempre me prometera. um casal renascentista em porcelana, pintado de azul-escuro e dourado. eles giravam enquanto a música tocava. era fascinante vê-los sobre o piano, sempre tão alegres e girando-girando-girando. aquilo deve ter sido vendido por uns 40 reais e hoje já deve ter se quebrado na mão de alguma criança ou doméstica descuidada. o dinheiro com certeza pagou uns maços de cigarro. e eu fiquei sem ter uma peça que me lembrasse as tardes ao piano com a vó "dulce, doce dulce".
hurts, still.
é por isso que, com orgulho, choro de emoção com a velha singer '66.
mais do que máquina, ela é história. mais do que qualquer cordão de pérolas, é tesouro de família.
por acredoce, autora nunca publicada e raramente lida.
preenchimento do cabeçalho obrigatório: 6/04/2006 11:42:00 PM
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