mais um adjetivo para volúvel ->

 

7.18.2005

quanto tempo demora para se acostumar à solidão

sempre existe um limite entre emoção e praticidade. e enquanto o cachorro aqui atrás ronca alto, eu não páro de pensar. para não cair na contradição "pensando em tudo/pensando em nada" eu procuro ser específica.

meu pai saiu do cti e foi para o quarto. todos os médicos foram enfáticos "ele não está bem", mas acho que ele conseguiu encher a paciência de todo mundo por lá. hoje, ninguém chegava perto. pelo que pudemos - eu e minha mãe - saber dos enfermeiros, meu pai levantou-se nessa madrugada e tentou organizar uma rebelião no cti. vários doentes terminais se levantando e berrando. isso mesmo. e uma das doentes ligou para a filha, do celular escondido embaixo do colchão, para relatar o fato. hoje foi um tal de falar com o administrador do hospital... eu e mamãe saímos de fininho, para que não tivéssemos que responder pelo lado fernandinho beira-mar de papai.

ele hoje, no quarto, veio me dizer que as pessoas do cti estavam de sacanagem com ele, porque não fizeram a barba. eu mencionei o rebuliço que ele causou e ele negou de pés juntos. disse que eu estava louca, me deu um tapão no braço - que agora tem o patético hematoma de três dedos - e me mandou sair e não deixou eu entrar no quarto. minha mãe suspirou. tadinha... ela vai ficar com ele até sexta-feira.

eu acabei sozinha no apartamento, com uma pilha de contas de duas casas (do meu pai e da minha mãe) para pagar, além de ter de lembrar de molhar as plantas, lavar a louça, fechar as janelas... não sei onde deixei de prestar atenção, para acabar com a vida de cabeça para baixo. minha irmã já me ligou 3 vezes para ver se eu não me eletrocutei com a tv ou escorreguei no banheiro.

recebi, também, a incumbência mais mórbida de todas: levantar preços de jazigos, funerárias e afins.

- mãe, eu não quero fazer isso. vou pro inferno.
- que nada, minha filha. sejamos práticas.
- eu te dou os telefones.
- para eu ligar do hospital com seu pai a 30 cm de distância? vc acha q eu quero q ele ouça isso?
- parece um complô. estou me sentindo a lucrécia bórgia com o anel.
- dramática.
- é... drama puro. atuação. afinal, o que há de ruim em orçar a morte do próprio pai?

aí, lá fui eu realizar todas as ligações. as pessoas nesse ramo raramente dão bom dia e invariavelmente perguntam: "mas você está vendo isso porque alguém morreu ou...?" assim, sem terminar a resposta. eu fico pensando em quem poderia ser louco o suficiente para ligar e orçar a morte por estar sem nada para fazer numa tarde de segunda-feira.

o pior foi o sr. wagner, um desses papa-defuntos da vida:

- alô! (voz jovial do sr. wagner atendendo o telefone)
- oi, eu queria orçar os seus serviços funerários.
- ah. (voz deixa de ser jovial e passa a ser profunda e respeitosa) mas você está vendo isso porque alguém já morreu ou...?
- não. talvez. possivelmente. ah, moço, o senhor pode só me dizer os preços dos... hm, pacotes? (e nessa hora eu bati com a cabeça na escrivaninha três vezes e me senti o lixo do lixo)
- bom.. temos três tipos de serviço: o de 1.100, com caixão claro, simples e sem visor. o de 1.500, com caixão escuro e com visor e o de luxo, 1.800, com caixão com verniz de alto brilho... peraí... (ele se afasta do fone, mas não tapa) você quer parar de se esfregar no carro? sai! (volta para o telefone) oi, voltei.
- ah.
- era o meu filho se esfregando no carro.
- ah... tá. bom, muito obrigada.
(pausa constrangedora)
- olha, minha filha, enquanto há vida, há esperança. mas, se deus quiser chamar a pessoa para ser anjinho no céu... pode me ligar que eu chego o mais rápido possível, só dependendo do trânsito e do horário. e lembrando que, nos fins-de-semana e feriados, o cartório só abre até o meio-dia.

eu joguei pedra na cruz.

por acredoce, autora nunca publicada e raramente lida.
preenchimento do cabeçalho obrigatório: 7/18/2005 11:15:00 PM |